A história de Micaela Cyrino, contaminada pelo HIV no parto, revela como o preconceito continua presente e mostra como é difícil a vida de crianças e jovens soropositivos no Brasil. Quando a paulistana Micaela Cyrino, 22 anos, era criança, ela se cansou de escutar dos amigos da escola algo não muito agradável, ainda mais quando se tem 6, 7 anos de idade. “Minha mãe não quer que eu brinque com você”, eles diziam. O motivo era conhecido. Lá, no colégio da zona leste de São Paulo onde estudava, todos sabiam que ela tinha Aids. Micaela nasceu com a doença. Foi contaminada no parto. Seus pais eram soropositivos (infectaram-se por meio do uso de drogas injetáveis) e morreram quando ela estava com 6 anos de idade.
A garota, um dos cerca de 630 mil brasileiros que têm o vírus, faz parte da nova geração da Aids, que, como ela mesma define, não traz mais no rosto as marcas de fragilidade associadas, no passado, à enfermidade. “Antes você sabia quem tinha a doença, pois não havia tratamento”, diz. “Agora, quem toma medicamentos está bem.” É o seu caso. Quem a vê não encontra sinais que denunciem a presença do HIV. Isso porque, desde a infância, Micaela faz uso dos remédios anti-Aids. Hoje, são cinco comprimidos diários, mas já chegou a tomar 14 pílulas por dia. Além dos medicamentos, de dois em dois meses passa por uma bateria de exames para saber se está com boa saúde.
Marcas mesmo ela traz na memória. Nada que a deprima, mas lembranças que deixam muito claro como é difícil ser uma criança com Aids no Brasil. Após a morte de seus pais, Micaela foi levada a um abrigo para jovens soropositivos. Mas não houve um dia em que alguém lhe dissesse, lhe explicasse o que, afinal, ela tinha. “Fui entendendo aos poucos”, lembra. “Tomava remédio porque me mandavam. As enfermeiras diziam que era para fortalecer os soldadinhos do meu corpo contra os ‘bichinhos’ que podiam me fazer mal.”
Na escola, enfrentava também o preconceito dos professores. Quando estava no ensino médio, aí sim já consciente da sua condição como soropositiva, Micaela ouviu um dos maiores absurdos que qualquer pessoa poderia escutar. “Um professor de biologia disse, na sala de aula, que a solução para a Aids era reunir todas as pessoas com HIV e matá-las”, conta. Nesse episódio, ela nem precisou agir. Quando ensaiou dizer algo, foi surpreendida com uma rápida intervenção dos colegas repudiando a fala do professor. Vendo a reação, ele se desculpou, mas não recebeu nenhuma punição institucional. Dos anos de escola, guarda ainda duas idas à diretoria. A primeira por discordar – corretamente – de uma professora, na sétima série, que afirmou que o HIV podia ser transmitido por picada de inseto ou pelo suor. A segunda vez ao levar para o colégio algumas camisinhas para mostrar aos amigos que havia aprendido, em um projeto de educação sexual, a colocar o preservativo. “A professora achou que isso era incentivo ao sexo”, lamenta a menina.
Na verdade, Micaela recebeu as informações sobre sexo a conta-gotas. “Na casa de apoio onde eu morava eles pregavam a abstinência sexual e nada mais. Na escola, a mesma coisa.” Mas o interesse em encontrar formas de ter uma vida sexual plena, mesmo com Aids, impulsionou a jovem a procurar mais dados sobre o assunto. E ela resolveu que não iria esconder dos namorados sua condição – atitude, aliás, não seguida por alguns de seus amigos também infectados. Só fugiu à regra da primeira vez em que fez sexo, aos 20 anos. “Não contei porque foi um caso só de uma noite, durante uma viagem.” Mesmo assim, ela faz questão de frisar, usaram preservativo. Até agora, ninguém desapareceu da sua vista depois de saber que é portadora do HIV. Seus relacionamentos, ela garante, começam e terminam como os de qualquer outro casal.
Micaela fez da sua experiência uma ferramenta de atuação. Hoje, está à frente da Rede Nacional de Jovens Vivendo com HIV e Aids, articulação formada em 2008 com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para dar voz às demandas dessa parcela da população infectada pelo vírus. Para o futuro, faz planos como qualquer garota de 22 anos. Quer se formar na universidade (está no segundo ano de artes plásticas), trabalhar e sonha em morar junto com o irmão mais novo, de 15 anos, também soropositivo. Hoje, o garoto mora no abrigo, e Micaela vive na casa de uma tia. “Quando puder, quero tirá-lo de lá”, diz.
“Um professor de biologia disse que a solução para a Aids era reunir todas as pessoas com HIV e matá-las”
A garota também deseja ter filhos. “Nem penso que eles terão HIV”, observa. De fato, atualmente é possível impedir que isso aconteça. Basta que a mãe tome os medicamentos anti-HIV ao longo da gravidez e na hora do nascimento. E que não amamente o bebê. Embora os tratamentos estejam cada vez mais eficazes, Micaela não espera pela cura. “Não que tenha medo de criar falsas expectativas, mas é preciso ser realista. Quando eles descobrirem uma vacina, por exemplo, quanto ela custará?”, pergunta. Para ela, tão importante quanto uma droga capaz de exterminar o vírus seria a sociedade combater o preconceito que ainda existe contra os soropositivos. (testo Rachel Costa Rev ISTO É)
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