Todos os anos, laboratórios farmacêuticos investem cerca de US$40 bilhões em pesquisas de novos remédios para um sem-número de doenças. Se, por um lado, lucram alto quando descobrem um remédio novo eficaz, por outro dão esperanças a milhões de pacientes que buscam a cura para seus males ou uma maneira menos dolorosa ou debilitante de conviver com sintomas crônicos. Num país que pesquisa pouco, os estudos médicos de novos remédios são bem-vindos pela comunidade científica e autoridades governamentais brasileiras, mas, à medida que sua importância como ferramenta de inovação cresce, aumentam as críticas de médicos que trabalham com ética médica sobre o sistema de controle e fiscalização de testes de novas drogas com seres humanos no Brasil. Governo não fiscaliza de forma independente e sistemática 3 mil testes de produtos em curso no país.
E a razão é simples: o governo brasileiro, através da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), simplesmente não fiscaliza de forma independente e sistemática os cerca de 3.000 testes de novos tratamentos, equipamentos e remédios que acontecem hoje no país envolvendo, segundo estimativas de profissionais de saúde, cerca de 250 mil brasileiros. Para que esses testes ocorram, o projeto precisa ser aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) do Ministério da Saúde. E só. Daí em diante, e até o pedido de registro da nova droga ou tratamento, nada é fiscalizado, a menos que ocorra um "efeito adverso" - problemas que vão de uma reação colateral imprevista à morte pura e simples.
Conep não aprova cerca de 30% dos processos que analisa. O registro do novo medicamento é dado pela Anvisa com base nas informações prestadas pelos próprios laboratórios farmacêuticos, por CROs (empresas terceirizadas contratadas pelos laboratórios para coordenar os testes) ou pelas instituições de pesquisa através dos seus Comitês de Ética (são cerca de 600 no país). No caso de instituições de pesquisa brasileiras mais conhecidas, como, por exemplo, o Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo ou a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio, os testes são feitos e controlados por conselhos de ética profissionais e realizados sob as regras internacionais que regulam o assunto, do Código de Nuremberg à Declaração de Helsinqui da Associação Médica Mundial. O problema são os testes realizados fora desses centros, especialmente aqueles que escolhem comunidades mais pobres e menos esclarecidas como cobaias ou os realizados por médicos em seus consultórios.
- Cerca de 30% dos processos encaminhados à Conep não são aprovados por falhas éticas em situações envolvendo as pessoas que participam das pesquisas - diz Gyselle de Saddi Tannous, coordenadora da Conep. Ela diz que a qualidade do controle ético exercido por instituições tradicionais de pesquisa está garantida. O mesmo não pode ser dito sobre os testes fora desses centros, cujas falhas incluem não avisar os pacientes de que eles estão sendo submetidos a testes de novas drogas, não informar sobre riscos de efeitos colaterais ou realizar testes com um número de pacientes pouco significativo.
Temos muito o que avançar em termos de inspeção em locais fora dos grandes centros - diz Gyselle.
Procurada, a Anvisa não se manifestou.
- As tarefas da Conep devem ser reestudadas para que se possa ter um monitoramento das pesquisas em andamento e auditoria, caso necessário, por esse órgão, que normalmente controla e avalia a priori os projetos. - diz Paulo Antônio Fortes, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.
- O que se vê é que, uma vez aprovado o protocolo, não há acompanhamento dos testes, a menos que aconteça algum efeito adverso - diz Jorge Beloqui, soropositivo pioneiro da luta contra a Aids que durante seis anos (de 1999 a 2005) foi membro da Conep representando os usuários de medicamentos.
- Não há um sistema eficaz para o monitoramento. O projeto, uma vez aprovado, passa a ser executado. A ética fica por conta do pesquisador ou da equipe de pesquisadores, sem a avaliação periódica de uma comissão independente. - diz a professora de Estatística e ex-membro da Conep Sonia Vieira, autora do ensaio "Experimentação com seres humanos". - Não temos sequer a obrigatoriedade de relatórios periódicos no decorrer da pesquisa.
Os problemas começam com a disponibilidade de números sólidos sobre o assunto, o que não existe. O banco de dados do Sistema Nacional de Informação sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (Sisnep) não traz dados consolidados e não informa quantos brasileiros estão hoje servindo de cobaias humanas. Quando se clica no Estado do Rio, aparece uma lista com 987 procedimentos diversos de pesquisa aprovados pelo órgão.
O site Clinicaltrials.org é um banco de dados ligado ao National Institutes of Health (NIH) - a maior agência de pesquisas médicas do governo dos EUA - que reúne informações sobre todos os testes clínicos ao redor do mundo. Para que o laboratório farmacêutico possa registrar o novo medicamento no fim da pesquisa, ele precisa antes registrar no site as informações sobre os testes. Ali, descobre-se que o Brasil é hoje o local de realização de 2.293 testes de novos medicamentos de praticamente toda a grande indústria farmacêutica contra doenças que vão da epilepsia à disfunção erétil.
Os laboratórios que hoje fazem testes no Brasil (e praticamente todos fazem) garantem que seguem as melhores práticas internacionais sobre o tema. O mesmo garante Victor Harada, diretor-presidente da Associação Brasileira das CROs (Abracro).
- As autoridades brasileiras são tão rigorosas que o tempo de aprovação de um processo no Conep leva muito mais tempo no Brasil, cerca de seis meses, do que em outros países, o que acaba prejudicando a pesquisa - diz Harada.
Em declaração enviada por e-mail, o laboratório Pfizer afirma: "A Pfizer realiza estudos clínicos no Brasil, e, assim como em todos os países onde atua, a companhia segue rigorosamente as normas que regem a realização dessas pesquisas. Atualmente, a Pfizer possui 43 moléculas para o tratamento de doenças diversas, que estão sendo pesquisadas em 79 estudos clínicos de 369 centros de pesquisas brasileiros, envolvendo 8.744 pacientes."
Segundo a diretora médica da AstraZeneca, Telma Santos, via e-mail, "grande parte das pesquisas é gerenciada e monitorada diretamente pela AstraZeneca, que faz 25 estudos com cerca de 1.670 pessoas no Brasil". A Sanofi-Aventis enviou a seguinte declaração por e-mail: "A Sanofi-Aventis tem o compromisso de realizar estudos clínicos com os mais elevados padrões de qualidade, sempre mantendo os valores éticos e a conformidade regulatória visando à proteção dos participantes da pesquisa. As normas éticas são as mesmas aplicadas em qualquer estudo clínico realizado pela empresa em qualquer lugar no mundo."
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