A Reforma Sanitária Brasileira pode ser caracterizada enquanto um processo complexo, cujas raízes remontam o final dos anos 60, calcadas em um movimento crítico, ainda que tais críticas – dirigidas ao regime autoritário- emergissem de forma ainda desorganizada, em espaços acadêmicos e institucionais.
Neste contexto, gera-se a idéia de um sistema de saúde calcado nos principio da igualdade de acesso, na resolutividade e na integralidade, ou seja: impõem-se a idéia da saude enquanto uma política pública, e, portanto, financiada com recursos públicos que a todos contemplem, independentemente de sua inserção no processo produtivo (mercado formal de trabalho). Neste sentido, a segunda metade da década de oitenta é marcada pelo início do processo de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), primeiramente com a fusão institucional das agências estaduais do Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS) com as Secretarias Estaduais de Saúde – e, num segundo momento, com a municipalização dos serviços de saúde. No cenário de emersão social e materialização política destas alternativas, ocorre, em 1986, a VIII Conferência Nacional de Saúde, a qual veio a impulsionar a Reforma Sanitária, uma vez que esta veio a possibilitar uma ampla coalizão de interesses contextualizada no cenário de redefinição das relações entre o Estado e a Sociedade Civil, no período subseqüente à ditadura militar, os quais vieram a se materializar na Assembléia Nacional Constituinte, eleita em 1988. Seqüencialmente, a Constituição Cidadã, promulgada em 1988, e cuja redação contou com a participação direta de constituintes historicamente comprometidos com a Reforma Sanitária, conceitualiza a Saúde enquanto uma Política Pública, enfatizando-se que primeiramente, a Saúde é definida, enquanto um Direito Social, a ser garantido pelo Estado.
Em que pese o fato das diretrizes operacionais do Sistema Único de Saúde encontrem-se expressas nas Leis Federais 8080/90 (Brasil, 1990) e 8142/90, sua efetivação veio a ocorrer de modo gradual, nos anos posteriores através das Normas Operacionais Básicas (NOB).
A Norma Operacional Básica (NOB) nº 01, aprovada mediante a publicação da Portaria MS nº 1.461/91, encarrega o INAMPS de implantar a nova política de financiamento do SUS, qual seja : os municípios, uma vez cumpridos determinados requisitos (criação do Conselho Municipal de Saúde – COMUS; criação do Fundo Municipal de Saúde – FMS- realização de Conferência Municipal de Saúde e elaboração do Plano Municipal de Saúde) poderiam pleitear transferências do Fundo Nacional de Saúde, FNS, aos FMS, afim de que fossem custeadas as atividades ambulatoriais.
A NOB nº 01/96 (Brasil, 1996), disciplina e especifica as atribuições das esferas federal e estaduais de governo na gestão do SUS.
A partir desta definição de papeis, os municípios, são, incentivados a aderirem ao SUS vindo para tanto a fazer jus às transferências de recurso do FNS aos Fundos FMS. A percepção destes recursos, diretamente transferidos aos Fundos Municipais de Saúde, e, conseqüentemente sujeitos ao controle dos COMUS, obedece a ritos processuais denominados pleitos de habilitação. Assim sendo, a habilitação básica, nos termos da NOB 96, prevê a transferência de recursos para a atenção básica à saúde baseado em critérios demográficos, denominando-se Piso de Atenção Básica (PAB) Fixo. Os recursos provenientes da habilitação no Programa de Saúde da Família (PSF) se denomina PAB Variável, pois o montante varia em consonância com o número de equipes implantadas e faixas de cobertura populacional, em termos percentuais.
A somatória dos recursos, nos termos da NOB 01/96, compõe o Teto Financeiro Global do Município – TFGM. O advento da NOB 01/96, através da concretização das transferências de recursos diretamente do FNS aos FMS, idealmente, garantiu os municípios à gestão, mormente da Assistência Básica à Saúde, de acordo com a definição de prioridades e desenvolvimento de modelos assistências condizentes à realidade municipal.
Este advento, e a conseqüente necessidade de enfrentamento à epidemia de HIV/Aids (através da proposição e execução de políticas publicas especificas), no Brasil, ocorre, em termos cronológicos, concomitantemente ao processo de construção do Sistema Único de Saúde.
Ou seja: o primeiro caso de infecção pelo HIV no Brasil, ocorre logo no início dos anos 80, período no qual esboçavam-se as primeiras ações concretas na construção do SUS. Desta forma, a paulatina regionalização e descentralização da gestão das políticas de saúde, e a conseqüente adesão dos municípios ao SUS, garantida pelas várias NOB, mediante a elaboração de Planos de Saúde (Municipais, Regionais, Estaduais), uma vez embasada em indicadores epidemiológicos, pôde prever, e, portanto, destinar recursos, às ações de prevenção e assistência em HIV/Aids.
Com efeito, procedimentos referentes ao diagnóstico e tratamento de portadores de HIV/Aids e de outras doenças de transmissão sexual, uma vez sendo executadas pelas instâncias governamentais aderentes ao SUS, sempre foram passíveis de financiamento, através dos mecanismos de financiamento previstos nas NOB, ou através de recursos dos próprios gestores da ação.
Num espaço de 25 anos, mais precisamente de 1982 a 2007, o número total de casos de Aids notificados no Brasil, passou de 1 para aproximadamente 500.000. Já em meados dos anos 80, o acelerado grassar da epidemia fazia-se pesar, de modo inequívoco em nossa sociedade.
Assim sendo, a crescente magnitude epidemiológica verificada e a conseqüente necessidade de estruturação de serviços de atendimento a portadores, bem como o desenvolvimento de ações de prevenção, motivou o Governo Federal, pelo Ministério da Saúde, a celebrar acordos com o Banco Interamericano Para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), visando à consecução de recurso, destinados a estes fins.
No período compreendido entre 1994 e 2006, foram executados três acordos, respectivamente denominados AIDS I, AIDS II e AIDS III. Tais convênios celebravam-se mediante a elaboração de instrumentos formais, denominados Planos Operativos Anuais (POA).
Nesta modalidade de recursos financeiros, a prestação de contas do conveniado ao convenente, é realizada de maneira contábil, ou seja, através da apresentação de comprovantes de despesas, não havendo necessariamente parâmetro de avaliação técnica das ações executadas.
Evidencia-se, portanto que, a forma de financiamento inicialmente desenvolvida pelo Ministério da Saúde para ações de prevenção e assistência em DST/Aids, ou seja, os convênios “POA”, consistiram, nos período compreendido entre 1994 e 2002 enquanto em um anacronismo institucional.
A modalidade convenial de repasse de recursos financeiros obedece a formas contábeis de prestação de contas legalmente determinadas, hodiernamente dadas pela Lei Federal 8.666/93, diferenciando-se dos mecanismos de repasses financeiros e de controle social, inerentes ao SUS previstos nas Leis Orgânicas da Saúde, regulamentadas pela NOB 01/96.
Este anacronismo referente ao financiamento das ações de HIV/DST/Aids corrigiu-se pela Portaria MS 2313/02, a qual institui incentivo para Estados, Distrito Federal e Municípios no âmbito do Programa Nacional de HIV/Aids e outras DST, e também pela Portaria MS 2314/02 que aprova a Norma Técnica – Incentivo HIV/Aids e outras DST.
Com a habilitação dos municípios os recursos financeiros passam a ser regularmente depositados em conta do Fundo Municipal de Saúde, seguindo assim a lógica dos demais repasses, lato senso, denominados fundo a fundo. No segundo semestre de 2002, tão logo foi definida, pelo MS, o PN DST/Aids publicou o Manual de Orientação para Elaboração do Plano de Ações e Metas em HIV/AIDS e outras DST Para Ano de 2003.
Este manual veio a ter sua aprovação oficializada através da Portaria MS 2314, publicada no Diário Oficial da União (DOU) em 20 de dezembro de 2002, ou seja, um dia após a publicação da Portaria 2313/02 (Brasil, 2002).
Em agosto de 2004, por meio da Portaria MS 1679/04 (Brasil, 2004), o MS definiu as normas relativas ao Sistema de Monitoramento da Política de Incentivo no Âmbito do Programa Nacional de DST e Aids. Este monitoramento é realizado (on line, ou de modo convencional), através das informações prestadas unicamente pela esfera de gestão que vem recebendo o recurso. Nota-se que o gestor (estadual, municipal) é o único responsável pelas informações prestadas, e tais não são verificadas em sua veracidade.
Ou seja : a instância gestorial se auto-auditora.
A Portaria MS 2313/02 adequou e a transferência dos recursos referentes às ações em DST/HIV/AIDS à lógica das transferências fundo-a-fundo, disciplinadas pela NOB 01/96. Porém, há que se ressaltar que os recursos destinados a estas ações não estavam previstos na referida Norma Operacional (publicada seis anos antes), ou seja, não compunham nenhum dos elementos do TFGM.
A Portaria MS 399/06 veio a enquadrar o incentivo referente às ações em DST/HIV/Aids (pactuados no PAM) como recursos concernentes ao “Financiamento para a Vigilância em Saúde”.(Brasil, 2006).
Ao longo dos últimos seis anos temos tido a oportunidade de acompanhar o processo de implantação da política de incentivo fundo-a-fundo, tanto em nível de esferas municipais, quanto estadual, ou seja, temos exercitado uma participação ativa no, conforme lexicamente consagrado, processo de implantação do PAM.
Com regular freqüência, os assim chamados gerentes apontam a necessidade premente de que os recursos repassados através do mecanismo de incentivo fundo-a-fundo, venham ter, por parte das instâncias fiscalizadoras competentes, um efetivo acompanhamento do exercício técnico-financeiro, a fim de que, as gerências municipais tenham mobilidade administrativa para o cumprimento das metas pactuadas.
Com efeito, o dispositivo constante na Emenda Constitucional nº 29, que determina que a gestão financeira dos Fundos Municipais de Saúde sejam prerrogativas do Secretario da Saúde é raramente cumprido: a movimentação financeira destes fundos, é ainda efetuada pelas áreas administrativas, quando não pelo próprio prefeito.
Por outro lado, a garantia do cumprimento das metas pactudas passa necessariamente pela revisão do das relações institucionais verificadas entre as áreas da saúde e administrativas dos municípios, ou mesmo entre as áreas programáticas de uma mesma Secretaria Municipal da Saúde.
Chegamos, a nosso ver, ao ponto fulcral da questão: a pactuação de metas, através do instrumento formal de pactuação – os PAM – bem como a aprovação destes por instâncias deliberativas (sendo a primeira destas instâncias os Conselhos Municipais de Saúde), em si, não ofertam garantias de que os gestores e gerentes venham a desencadear as ações previstas ao cumprimento das metas pactuadas, ainda que o repasse de recursos financeiros concernentes a estas esteja assegurado.
Avulta-se tal quadro, frente a admissão, pelo próprio Ministério da Saúde de que somente 7 % do montante do TFGM é utilizado na ação a qual foi destinado, sendo impossível precisar a utilização dos restantes 93 % das transferências fundo-a-fundo Em sua introdução, a Portaria MS 399/2006, coloca que as Diretrizes Operacionais do Pacto pela Saúde 2006 (aprovadas pela portaria em questão) foi alvo da aprovação em plenária por parte da Comissão Intergestora Tripartite (em 26 de janeiro de 2006) e do Conselho Nacional de Saúde (ocorrida em 9 de fevereiro do mesmo ano), vindo a refletir portanto, a consolidação de um amplo processo de discussão entre atores institucionais de diferentes esferas de governo e da sociedade civil, tendo por objetivo basal a consolidação do SUS.
Neste sentido, há que se ressaltar a necessidade de observação no disposto no anexo I da Portaria MS Nº 399/2006 quanto às responsabilidades na regulação, controle, avaliação e auditoria, conferindo aos Estados “monitorar e fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros transferidos aos fundos municipais” e à União ”monitorar e fiscalizar a aplicação dos recursos financeiros transferidos fundo a fundo e por convênio aos fundos de saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” Evidentemente, tal dispositivo – em que pese a necessidade de sua regulamentação através de ato normativo – também não tem sido observados.
Resta-nos assim, somente, o ato de cidadania extrema, de incidência política sobre o Congresso Nacional visando a imediata aprovação do Projeto de Lei 4.010/2004, o qual “dispõe sobre a responsabilidade sanitária, cria o Sistema Nacional de Regulação, Controle, Avaliação e Auditoria do SUS”.
Cláudio C. Monteiro Jr é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e mestre em Infectologia em Saúde Pública pelo Instituto de Infectologia em Emílio Ribas. Atua desde 1985 no enfrentamento ao HIV, em organizações governamentais e não governamentais, sendo membro da Pastoral da AIDS, CNBB.
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