A politica de saúde persiste em sua
trajetória hipercomplexa e contraditória. Apesar do gigantesco esforço dos
governos, gestores e entidades comprometidas com o Sistema Único de Saúde
(SUS), o intenso processo de mercantilização da assistência médico-hospitalar
cria um vetor que tenciona permanentemente com o ideário reformista. O denominado processo de
“americanização” do sistema de saúde brasileiro conforma na prática um projeto
contra hegemônico ao SUS. Esse processo envolve múltiplas dimensões e
determinações: políticas, econômicas, tecnológicas e ideológicas. Passemos a
uma análise mais acurada dessa complexa rede de determinantes em seu atual
momento dentro do modelo de desenvolvimento brasileiro. Em foco, a reconquista de hegemonia
para o SUS. E para isso, torna-se fundamental considerarmos um novo conceito de
sustentabilidade: aquele que incorpora aos componentes econômico, tecnológico,
institucional e político, o cuidado com a saúde e a qualidade de vida no
planeta.
Moacir Scliar em várias oportunidades
destacava a qualidade da saúde pública brasileira no enfrentamento das doenças
imunopreveníveis, nos resultados obtidos na redução da mortalidade infantil, do
aumento da expectativa de vida, na redução da mortalidade por doenças
cardiovasculares. Mas os novos desafios colocados pela tríplice carga de
doenças (infectocontagiosas, crônicas e causas externas), pela dramática
transição demográfica (em 2030 teremos mais brasileiros acima de 60 anos do que
entre zero e 14 anos), pela transição do padrão alimentar e cultural
(obesidade, diabetes, hipertensão), e pelas dificuldades estruturais de avançar
na linha da determinação social da saúde, colocam novos e complexos desafios
adicionais, em especial, recolocar a questão: como se produz saúde?
A “estratégia de reorientação
setorial”, com o Programa de Saúde da Família, avança em termos de cobertura e
complexidade (Nasf, Caps etc), mas não consegue se estruturar como única ou
principal porta de entrada do sistema.
Percebe-se uma orientação que
privilegia de certa forma a ação dos agentes comunitários, mas chamo a atenção
da importância de uma forte base de clínica ampliada (médicos, enfermeiros e
outros profissionais) que dê qualidade e resolutividade ao modelo respeitando e
contando com a ativa participação e colaboração dos pacientes e seus
familiares.
As iniciativas dos Ministérios da Educação
e Saúde para o fortalecimento da formação de clínicos e especialistas em saúde
da família, não parecem suficientes para reverter o vetor da
hiperespecialização e da fragmentação na formação médica. A questão do trabalho
médico se mantém como um dos mais complexos desafios. A possibilidade garantida
pela constituição de múltiplos vínculos públicos e privados para o médico, onde
a renda auferida em cada um desses espaços difere de modo importante, impede o
estabelecimento de vínculos institucionais mais sólidos, carreiras de horizonte
mais longo, dedicação integral a determinado serviço.
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Para enfrentar esse novo cenário será
necessário, por exemplo, construir uma nova institucionalidade para a
administração pública. Os aspectos relacionados aos modelos de gestão continuam
sendo motivo de polêmica e confronto entre gestores de diversos níveis
governamentais e órgãos de controle.
O fato é que não conseguimos dar
seguimento à construção de um novo modelo de macro governança principalmente
para grandes redes assistenciais. Algumas iniciativas inovadoras como a da
Bahia com a criação de uma fundação estadual para gerir o PSF devem ser mais
bem avaliadas. Há aqui, de fato, um “mal estar” que com frequência coloca em
choque a visão de quem está na linha de frente com visões das distintas
corporações (exemplo: a decisão do governo federal de criar uma empresa pública
para gerir os hospitais de ensino do MEC).
O mercado de planos e seguros cresce de
modo sustentado fortemente alimentado pelo espetacular resultado das macro
políticas das gestões Lula, ao ampliar fortemente a base do trabalho
assalariado enquanto a capacidade de regulação da Agência Nacional de Saúde
(ANS) esbarra nas limitações do marco legal e nas fragilidades do modelo das
agencias reguladoras.
As iniciativas referentes ao denominado
Complexo Econômico Industrial da Saúde são merecedoras de aplausos incluindo as
referentes a introdução de políticas de gestão de incorporação de tecnologias
em saúde.
Aspectos relacionados ao
desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica voltam à tona com a discussão das
questões colocadas pelo consumo de drogas (principalmente o crack) e a polêmica
opção pelas comunidades terapêuticas considerando que a rede de CAPS ainda está
aquém do necessário.
Uma novidade ainda pouco percebida, mas
considerada pela presidenta Dilma Rousseff, é a priorização da atenção integral
à primeira infância, integrando iniciativas dos programas Brasil Carinhoso,
Rede Cegonha e Estratégia Brasileirinhos Saudáveis (EBBS).
A primeira infância (da gestação aos
seis anos) é considerada um período decisivo para o desenvolvimento do ser
humano saudável, sob todos os pontos de vista: físico, mental e emocional.
Entretanto, quando do lançamento da EBBS, em 2009, ao contrário de muitos
países que já possuíam programas nacionais voltados a estas crianças – como
Cuba e Chile -, o Brasil ainda não contava com uma politica semelhante no nível
federal.
Trata-se de uma abordagem inovadora que
integra saúde pública, educação e desenvolvimento social, considerando
contribuições de campos diversos como neurociências e psicanálise. Este tipo de
iniciativa visa antecipar questões de produção e promoção da saúde, de maneira
a buscar caminhos inovadores de cuidado.
A politica de assistência farmacêutica
avançou com o Farmácia Popular e a estratégia de uso da rede de farmácias como
parceiras do governo no fornecimento de medicamentos subsidiados ou gratuitos.
Porém, o elenco de produtos oferecidos ainda é limitado. Creio que essa é uma
estratégia importante e que esbarra para sua plena consolidação na
insuficiência de recursos financeiros.
Iniciativas importantes foram tomadas
no aperfeiçoamento da gestão com a contratualização entre entes públicos e o
início do processo de uma macro avaliação do desempenho da saúde. Houve
críticas fundamentadas em relação à metodologia adotada para o estabelecimento
de um ranking de desempenho para estados e municípios, mas a iniciativa deve
ser aperfeiçoada.
No campo das relações entre publicidade
e saúde pública, área de extrema relevância, pouco pôde ser feito
principalmente pela postura omissa do legislativo em relação à publicidade de
medicamentos, de bebidas alcoólicas e alimentos infantis.
Nos direitos sexuais e reprodutivos
pouco se avançou, principalmente, sobre o aborto. Exceto pela histórica decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à questão da anencefalia.
Desafios
O macro financiamento setorial continua
como um dos principais desafios. Apesar do avanço em alguns aspectos da
regulamentação da emenda constitucional 29, o subfinanciamento que perdura há
mais de duas décadas, persiste como o principal fator que impede a qualificação
e avanço do SUS.
Aqui, destacam-se as questões
referentes à renúncia fiscal, subsídios variados ao mercado, co-pagamento de
planos privados a funcionários dos três poderes, regulação por parte da Receita
Federal do que pode ou não ser abatido do imposto de renda devido pelas
famílias etc.
Mas, desafio mesmo, é pensar saúde como
vida intensa e criativa, qualificada pelo desabrochar de plena potência das
capacidades humanas. Fundamental, portanto, reunir esforços e construir
alternativas à mentalidade conservadora e empobrecida que vê a saúde como
ausência de doença e política de saúde limitada apenas à dimensão da
assistência médica.
Nesta perspectiva, corremos céleres
rumo a um processo de americanização nos afastando do incrível ganho constitucional
que foi a saúde como direito de todos.
*Ex-ministro da Saúde
(2007-2010) e integrande da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva)
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